Desastre (Cesário Verde)
Ele ia numa maca, em ânsias,
contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos
queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o
peito,
Pesada e secamente, em cima duns
tapumes.
A brisa que balouça as árvores
das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os
cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das
desgraças,
Trazendo em sangue negro os
membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum
varal,
Chorava ao murmurar-lhe:
"Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta
da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre
cerebral.
Findara honrosamente. As lutas,
afinal,
Deixavam repousar essa criança
escrava,
E a gente da província, atônita,
exclamava:
"Que providências! Deus! Lá
vai para o hospital!"
Por onde o morto passa há grupos,
murmurinhos;
Mornas essências vêm duma
perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém
de vinhos,
Numa travessa escura em que não
entra o dia!
Um fidalgote brada e duas
prostitutas:
"Que espantos! Um rapaz
servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns
recrutas
E conta-se o que foi na loja dum
barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para
não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida
cheia;
Levava a um quarto andar cochos
de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem
aprendera a ler.
O mísero a doença, as privações
cruéis
Soubera repelir - ataques
desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com
seis anos
Andara a apregoar diários de
dez-réis.
Anoitecera então. O féretro
sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum
correio,
E um democrata disse: "Aonde
irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num
seio"?
E eu tive uma suspeita. Aquele
cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo
com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo!
estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos
expostos...
Análise:
Escritor
realista que, neste poema em especial, faz uma crítica, social, política e
econômica. Que através de soluções estéticas e poéticas descreve o
cotidiano enfatizando o social, o caos urbano, traduzido numa linguagem
objetiva e de dimensão realista articulado entre o físico do moral.
Sua poesia
trás aspectos negativos e trágicos de uma sociedade, injustiça sociais que
vemos no caso da criança que não lhe é dada o devido respeito e é tratada com
total indiferença. Algo muito presente
em suas construções é o fator "humilhação", que no trecho "Aonde
irás, ministro! / Comprar um eleitor?" Cesário percebe esta situação pela
exploração infantil de uma criança descendente de escravos, ajudante de
pedreiro que morrera de forma trágica e ignorada pela população.
Fábio Júnior.
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